Durmo com os caixeiros-viajantes, em projeção astral, abduzido pelas moscas volteando minha carcaça, a regurgitar e a engolir o próprio vômito. Durmo coberto com folhas outonais a me caírem de sono, a olvidar suas amas secas, enquanto as árvores ancestrais não encontram seus donos e os pássaros colibram a visão do mundo dentro da perspectiva de suas céleres asas: marcha para trás. Durmo com a fome nunca ouvida, entre alucinações e altíssimos roncos estomacais. Durmo sem casa, rebelde do terreno baldio, sem calças, nem calçamento digno em que possa deitar meu pranto e camuflar meu cinza, à sarjeta, na fossa, quando todo gato é pardo, atirando pedras à noite até meter a cabeça no bloco de concreto. Não armado. Pesadelo. Autoflagelo ou linchamento? Durmo ante o perdão dos outros. Durmo desalojado em qualquer hora do dia. Atearam fogo em mim, mas eu já não era nada, mesmo assim. Durmo por minha causa, boquiaberto, enquanto pensavam se tratar de um bocejo. Durmo por estupefação, nojo, enfado. Durmo com cheiro de queimado em meio à correnteza, levada como lixo azedo preso rente aos sacos. Durmo acorrentado pelo frio do corpo. Durmo com meu filho deserdado por um aborto, por um chute na barriga de minha mulher. Durmo em barricada. Durmo, porque já morto, desalmado. Durmo a par dos sonhos que se supõem reais. Durmo, sobrenatural, sem esperar pelo tempo. Durmo por saber que não voltarei aqui nunca mais.
Texto: Paola Benevides
*Auto (latim: actu = ação, ato) é uma composição teatral do subgênero da literatura dramática, surgida na Idade Média, na Espanha, por volta do século XII.
*Alto da Paz é uma comunidade situada no bairro Vicente Pinzón, em Fortaleza, onde moradores foram desapropriados pela Polícia Militar de forma violenta.
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