22 agosto 2008

Cá choro

Fui traída, atraída por milhões de carrapatos. Pelas costas. Maldita a hora em que confiei o meu dorso amigo para sustentar tantos fardos. Eu, cadela de raça mestiça, sangue impuro, que não caça. Apenas me coço e não me livro desses bichos. Se ao menos um mendingo se condoesse por mim e me arrancasse metade dos parasitas que me sugam, se essa boa alma me limpasse o pelo do rabo com um afago, talvez sobrevivesse mais uns sete anos caninos ou mais um ano humano com alguma graça. Mas eu resto aqui na praça com inveja das vidas dos gatos. Sou uma tola carregando tantas tetas para nada, murchas, sem filhotes. Nunca fui deflorada. Até meu cio fora suspenso. Emanar odores só se for do lixo revirado. Nenhum atrativo, latido seco, mal lato. Farejo o asfalto pelo meio, sigo o caminho das faixas brancas entrecortadas. O que são as cores? Por que não enxergo colorido? Minhas orelhas abanam os parasitas, ouço um zunido insuportável. Ali vem mais um carro. Por que desvio? Melhor ir para a calçada que ensurdecer com essa buzina. Não posso guiar cegos, nem trenós, ninguém me escolheria como amigo, aqui neve não tem. Bom chefe de matilha seria o tal São Francisco de Assis, uma vez me disse um louco. Eu que do lobo vim com meus uivos de fome, retornarei ao homem da estepe para roubar alguma comida.
Paola Benevides


"De todos os animais que conhecemos é o cachorro o que mais se uniu a nós. Sejam príncipes que lhe dão farta comida e leito de plumas, ou mendigos que dormem ao relento e só podem oferecer-lhe uma pequena parte das suas próprias migalhas, idêntica é a sua afeição e dedicação, e com igual amor lambe a mão ornada de jóias e os dedos trêmulos, consumidos de doenças e fome."
(Théo Gygas, em O cão em Nossa Casa)

Nenhum comentário: