13 julho 2011

Depois da traição linguística


A Língua da Traição


O antônimo de “traição” é “lealdade” ou “fidelidade”. Inquieto com essas palavras, o escritor migrante sente-se culpado por sua ausência física no país nativo, o que é convencionalmente visto por alguns dos seus conterrâneos como “deserção”. No entanto, a maior traição é escolher escrever em outra língua. Não importa como o escritor tente racionalizar e justificar a adoção de uma língua estrangeira, trata-se de um ato de traição que o afasta de sua língua materna e direciona sua energia criativa para outra língua. Essa traição linguística é o passo final que o escritor migrante ousa dar; depois disso, qualquer outro ato de separação parece insignificante.

Historicamente, o indivíduo sempre é o acusado de trair seu país. Por que não viramos o jogo acusando o país de ter traído o indivíduo? A maioria dos países tem sido contumaz traidora de seus cidadãos de um jeito ou de outro. O pior crime que um país pode cometer contra o escritor é torná-lo incapaz de escrever com honestidade e integridade artística.

Enquanto puder, o escritor permanecerá na sua língua materna, seu domínio seguro. O escritor alemão W.G. Sebald viveu e lecionou na Inglaterra por mais de três décadas e sabia bem inglês e francês, mas sempre escreveu em sua língua nativa. Quando perguntado do porquê de não ter mudado para o inglês, ele respondeu que não havia necessidade. Ele podia dar tal resposta pois o alemão era uma das principais línguas européias, a partir da qual seus trabalhos podiam ser traduzidos para outras línguas européias sem muita dificuldade. Ao contrário, o escritor franco-tcheco Milan Kundera iniciou sua produção literária em francês quando tinha mais de 60 anos. Tal esforço heroico pode significar alguma crise que motivou o romancista a fazer a mudança drástica. Se compararmos os livros recentes de Kundera, escritos em francês, com seus primeiros livros, escritos em tcheco, podemos ver que a prosa recente, após A Imortalidade, é muito menos densa. Entretanto, a adoção do francês foi uma corajosa aventura literária perseguida com um espírito incansável. Assim como o narrador de seu romance A Ignorância vê o retorno de Odisseu a Ítaca como a aceitação da “finitude da vida”, Kundera não pode voltar atrás e dá continuidade à sua odisséia. Isso também explica por que ele se referiu à França como sua “segunda terra natal”.

Já me perguntaram por que escrevo em inglês. Geralmente respondo: “por sobrevivência”. As pessoas tendem a igualar “sobrevivência” com “sustento” e elogiam minha modesta, e também esfarrapada, motivação. Na verdade, sobrevivência física é só um lado da história, mas existe um outro lado, a saber, existir — viver uma vida com significado. Existir também significa fazer o melhor uso da sua vida, perseguir uma visão.

Ha Jin

Ha Jin é um escritor sino-americano que nasceu na China, migrou para os Estados Unidos em 1984 e começou a escrever romances em inglês. Ele escreveu cinco romances, incluindo A Free Life [Uma Vida Livre] (2007); A Espera (1999), ganhador do Prêmio National Book; e Refugo de Guerra (2005), que recebeu o Prêmio PEN/Faulkner.

O trecho abaixo foi extraído de “The Language of Betrayal” [A Língua da Traição], do livro The Writer as Migrant [O Escritor como Migrante], coleção das Palestras de Campbell, ministradas por Ha Jin na Universidade de Rice, em Houston, Texas.

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