26 abril 2012

A literatura como experiência e como ofício


A questão da escrita. No momento, eu penso sobre essa questão porque ela tem aparecido sob a forma de curiosidade de alguns poucos amigos e conhecidos (ainda estou escrevendo?), bem como a partir do turbilhão de leituras, a grande maioria relacionadas com a carreira de professor de literatura.

A escrita exige uma parada, um momento de diálogo com você mesmo, no qual se divide (desmonta) impressões recentes, visões interessantes, leituras diversas, banalidades intrigantes, etc. Para o processo como um todo, este seria apenas um momento inicial. Após a parada, a lida desajeitada com a memória e a organização das ideias exigidas para a concretização da escrita, surgem algumas descobertas que, ou me deixam espantado com a maravilha que é existir, estar vivo no presente momento no mundo, ou me dão uma canseira de prostrar. No entanto, seja qual for o resultado, eu me transformo, e fico cada vez mais distante do ponto inicial, de quando tudo começou, de quando assisti um filme antigo, tarde da noite, sozinho na sala de estar, ainda pequeno, mas muito interessado naquela história contada por meio de imagens e vozes no volume mais baixo possível para não acordar ninguém em casa. 

O filme me marcou de tal maneira, e possivelmente ativou imagens e conhecimentos anteriores, que precisei escrever uma história pra desaguar o que eu sentia por dentro como acúmulo. Escrevi uma história sem correções, de um sopro, freneticamente. Ao final, pedi pro meu irmão ler e me dizer se ele conseguia entender aquilo. Ele me encarou, como se tentasse me reconhecer e pegou minha mão. Sentou na cama e pediu pra que eu lesse em voz alta.

Naquele dia descobri que havia um tipo de experiência complexa e transformadora, e que pode ser vivida a partir da criação com a escrita. Desde então, passo por idas e vindas, verões e invernos no tocante à escrita. Já encarei alguns momentos broxantes, como o backup criminoso que destruiu a produção de anos, e isso já faz oito anos. De qualquer modo, assim como para poder experimentar uma volúpia nova, plena, é necessário uma combinação imprecisa de coragem, inconsequencia, timing e, porque não, sorte, continuo a me inventar aos poucos em meio a livros, cadernos e pessoas, dando botes aqui, me frustrando ali, apre(e)ndendo o tempo todo - quando dá.

Ontem, no Centro Cultura Banco do Nordeste, ao tentar escapar do calor banho maria do centro, tive a grata surpresa de assistir um vídeo com o escritor cearense Ronaldo Correia de Brito. Ele saiu do sertão dos Inhamuns muito cedo para se tornar médico em Recife. Vive lá há mais de quarenta anos, mas, segundo ele, sua literatura versa sobre o sertão, o lugar de onde veio. No vídeo, ele diz não idealizar o ofício de escritor. A atividade seria tarefa tão digna quanto o é ser um professor, um mecânico, um bombeiro. Ele, no caso, é médico e escritor. Essa dualidade, a meu ver, já evidencia o paradoxo trazido pela visão dele: se a atividade do escritor é semelhante às outras, porque temos tantos escritores-médicos, escritores-advogados, escritores-professores e pouquíssimos escritores-escritores, a exemplo de mecânicos-mecânicos e bombeiros-bombeiros, que se realizam no seu próprio campo profissional?

Brito cita um trecho de um de seus contos como resposta à indagação sobre a sua dupla ocupação: "Os dois que se procuravam na noite eram um só". E conclui que somos múltiplos. Para ele, escrever é um modo de esquecer, de esvaziar a memória, e também uma forma de sobrepujar a morte. Sua visão sobre "a maldição do escritor", o dom que é ao mesmo tempo dádiva e tormento, me chamou a atenção. Ele acredita que a dita maldição é um mal necessário (ele lembrou sobre a condição para a criação literária: a solidão. O mesmo que reivindica Virginia Woolf em "Um teto todo seu"). Essa visão é bem diferente da apresentada por Elizabeth Gilbert, numa palestra online sobre inspiração. Ela procura desmistificar essa ideia sobre a "maldição do escritor", e coloca essa visão como algo construído culturalmente, muito pouco produtiva para a criação.

Numa entrevista recente, Ferreira Gullar afirma que a técnica é necessária para se criar, mas "não é suficiente", pois se assim fosse, ele seria capaz de criar 10 poemas por dia, uma vez que domina a técnica. Ele discorre brevemente sobre o processo dele, que pode levar dias, pois há o alinhamento entre técnica e magia, acaso e necessidade.

Alguns anos atrás, numa exposição de Vik Muniz na Unifor, fiquei hipnotizado com o pensamento do artista plástico sobreposto no meio da instalação. Uma frase de sua autora, que já não lembro as palavras exatas, dizia que qualquer um é capaz de produzir arte. Basta que se disponha dos meios para tal. Ou seja, na sua visão, o dom da criação é algo inerente ao ser humano, bastando apenas a disposição e o estudo para um indivíduo tornar-se um artista. A democracia (com seus lados A e B) é um tema que tem me consumido e excitado recentemente.

Em se tratando de literatura, os meios para se criar partem da formação de leitores. O vídeo sobre Brito integra o Seminário Avançado de Arte: Abril Literário, que acontece até hoje, dia 26, com uma palestra com o jornalista e escritor (escritor-jornalista) José Castello. O evento de três dias iniciou com a exibição do documentário "Por um Brasil Literário". Esse filme integra uma iniciativa bem interessante de democratização da literatura, fundada por Bartolomeu Campos de Queiroz e divulgada no site Brasil Literário.

Tarco 

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