Gostei muito da crônica abaixo, sugerida pela escritora e filósofa Márcia Tiburi no facebook. Vale a leitura! 

Beijo macho

Por: 

Ilustração: Simon Ducroquet

Numa cidade plana como esta, qualquer ladeira faz de você um Sísifo cheio de autopiedade, e a pedra que rolamos rua acima é justamente a que trazemos no peito. Não reclamo. Carregar um coração é pena compulsória, mas pelo menos nos deixa as mãos livres para o amor e as armas. Assim, não apenas subo a Doutor Muricy: eu a conquisto. Ruas difíceis me apaixonam. É meio-dia, a fome é respeitável, e nada colabora. A tempestade é forte e o guarda-chuva, frágil. O frio é moderado, mas o vento é contra. No inverno de Curitiba, um passeio é sempre jogo duro. Você marca um almoço agradável no Centro, no vietnamita perto de casa, coisa de seis, sete quadras, e quando vê está coberto de lama e vexame. A barra da calça ensopada, a ceroula úmida, a pele coçando, os sapatos devassados. Dentro deles, suas meias coaxam a cada passo. É o brejo que nos acompanha.
No alto da Muricy, invado um Largo da Ordem quase deserto. Ali, doze pessoas se afogam. Seis guarda-chuvas pretos como o meu, três sombrinhas floridas e um náufrago desprotegido, que desliza pelo petit-pavé em direção à panificadora. Tudo é fuga e movimento, água, trovão, ventania. Tudo nos acovarda. Só dois homens desafiam o caos, indiferentes ao clima e ao ridículo. Reinam sentados num banco de madeira, alguns degraus acima de nós, entre a estátua do cavalo babão e o relógio das flores.
Na verdade, não estão exatamente sentados. Estão lutando. Numa pose imóvel, num esforço trêmulo, um sobre o outro, encharcados. É uma dupla mendicante de punks. Não descreverei aqui o emaranhado de suas tatuagens, a posição de seus braços, pernas e coturnos, o novelo nervoso de seus músculos. Direi somente que um deles, o mais moço, de cabelos curtos e pretos, imobiliza o outro numa gravata e marreta seu estômago com uma sequência de três socos. Direi que o outro, um cabeludo de meia-idade, bêbado e grisalho, se abate com os golpes e, aos poucos, vai se deixando dominar, resfolegante. Direi também que a camiseta do provável vencedor é branca e muda. E que a do perdedor, como se soubesse, desde a fábrica, a quem iria vestir, diz: No future.
A cena nos detém, nos obriga a desacelerar, uns sete, oito pedestres na chuva gelada, potenciais testemunhas de uma agressão espetacular ou de uma anedota inocente, algo com que entreter os colegas de escritório na volta do rango, entre duas doses de café requentado. Mas, o que vemos?
Vemos o mais moço, com força criminosa, capturar o mais velho pelas orelhas — essas pobres alças que Plutarco, mestre na arte de tirar proveito do inimigo, um dia chamou de asas da cabeça. Vemos o mais moço aproximar da sua a cabeça do mais velho, que resiste cada vez menos àquela tração viril, àquele apelo à submissão; vemos o mais moço abrir a boca e pressioná-la, desajeitado, contra a boca do mais velho; vemos o mais velho, a princípio incerto, e depois seguro, abrir também a sua, aceitando a violência daquele beijo alcoolizado sob o temporal, para logo transformá-la em desafogo, escândalo e carícia.
O povo, meio pasmo, meio solene, não dá um pio. Parece respeitar ou temer tanta coragem. Eu acho graça, não me esqueço da maluquice de Plutarco: quando um soltar as orelhas do outro, será que a cabeça do grisalho encarnará um sabiá punk, partirá para longe, cantará num abacateiro? Penso em esperar a decolagem, mas o beijo está demorando demais, trinta segundos no relógio das flores, quarenta segundos, cinquenta, os caras se empolgaram, e nem a tempestade, nem o frio, nem minha fome, nem meus sapatos coaxantes querem saber de metáforas gregas. Um minuto e deu, fui. Agora, é preciso encarar a Trajano Reis, rumo ao restaurante vietnamita. Ladeira abaixo, de guarda-chuva, Sísifo e sua preciosa pedra rolante. A cada qual a sua.
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