19 agosto 2013

ATRAVESSADA

Para Tarco
SÃO BRÁS
No almoço, engoli uma espinha de peixe enquanto assistia ao jornal da comoção. Senti as duas extremidades ponteagudas descerem rasgando a goela. Não havendo mais tempo de tossir para resgatá-la, degluti com toda força. O telefone me toca uma notícia amarga e quase cuspo o chão. Saio correndo esbaforida até a pena mais próxima, então, desconto na escrita verdades por muito entaladas com fechada feição. Foi o que me manteve viva e morta ao mesmo tempo. A meditação diária só me refreou o instinto quando vi minha cadela brincando toda feliz com outra espinha, das grandes, entre as patas. Voltei ao prato. Ela havia remexido o que eu havia deixado por olvido sobre a mesa baixa de centro, sujando todo o piso da sala. Perdi a fome, esqueci a raiva, fui catar arroz grão a grão. Depois sorri com o canto da boca limpo. 

Retomei a leitura do Barnes, em O Sentido de Um Fim, quando, horas depois, justo o amigo que havia me emprestado este livro me liga para perguntar o que seria phishing, por causa de um alerta do antivirus a travar seu computador. Do inglês, fishing, trata-se de uma fraude eletrônica que visa "pescar" as informações pessoais de quem for a vítima. Mudamos rapidamente de assunto e gargalhamos freneticamente sobre nossas feridas expostas feito duas crianças raladas no joelho, pelas desgracinhas existenciais mundo afora. Não havia feito tamanha associação entre a espinha e a pesca, até que levantei da cama chamada pelos meus guias espirituais a uma palestra sobre "a dádiva do esquecimento" e vi uma figura de Jesus Cristo. Não bastassem as coincidências anteriores, ou melhor, sincronicidades, lembrei que peixe é o símbolo do Cristianismo e a palavra, em grego, é ICHTUS, um acrônimo para Iesus Christus Theou Yicus Soter, que significa Jesus Cristo Filho de Deus Salvador. Hoje pude dizer que fui salva mesmo, pois escapei de umas mortezinhas.

Eis que no meio da explanação da mulher num púlpito, depois de acentuar o mau-humor pelo ônibus lotado, impacientei-me na cadeira com seu sorriso renitente. Depois, acostumei e me rendi, perdoando o causador da minha inquietação do meio-dia através de uma mensagem de texto via celular. Não doeu. Sensação de que fui testada mais uma vez pelo invisível tão presente. Uma frase de Joanna de Ângelis ficou aplicando passes sobre minha cabeça: "o mal que me fazem não me faz mal, o mal que me faz mal é o mal que eu faço, porque me torna um ser mau." 

No caminho de volta para casa, meu amigo torna a ligar novamente. Narrou a aula que tinha acabado de ministrar na universidade, disciplina de Metodologia Científica. O tema era Verdade Absoluta. Ele explicava para a classe que não existia essa tal verdade, pois, com o tempo, os cientistas iam descobrindo muitos outros relativismos e quebras de paradigma. Foi aí que um aluno contestou: "professor, mas todos sabemos que a Terra é redonda, isto é uma verdade absoluta." Meu amigo complementou que nosso planeta era achatado nos polos, porém ao lembrar de um assunto que abordei, na época, estupefata, falou com propriedade que havia uma Anã Marrom em direção ao nosso Azul, prestes a colidir. A turma toda riu. 

Constatação: somos todos um fiapo de luz, uns mais iluminados que outros, tantos engasgados pelo próprio fardo, pela própria fala. Morreremos calados feito peixes. E o sentido do fim ainda não acabou, nem acabará, pois seguiremos eternamente vivendo por um triz.

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