07 março 2006

Beijo no Asfalto


A sessão acabara tarde e o caminho de volta a casa era considerável. Talvez uma hora andando a passos largos no início da madrugada. Ele ponderou e decidiu que não valeria a pena pegar um táxi. O filme que assistira o deixou leve, e o fez lembrar do prazer que sempre tivera ao ler Tchekov. Um sentimento de comunhão inigualável. Quase sorriu ao pensar em chegar em casa e ler ao menos um conto do russo antes de dormir. Partiu em linha reta tomando a Dom Manuel.

Alguns olhares logo no início da caminhada perceberam-lhe no rosto a serenidade sadia de uma juventude vivida sem grande alvoroço. Lera em algum lugar certa vez “feliz de quem foi jovem quando jovem”, mas a angústia que sentia com tal aviso enfraquecera nos últimos anos. Ao adentrar a avenida o fraco burburinho de gente que bebia numa terça-feira enfraquecia até a mudez. Os sons que lhe chegavam ao ouvido agora vinham de longe. Como era suave a cidade naquelas horas em que todos se protegiam uns dos outros. Era de seu costume fazer longas caminhadas tarde da noite e nem uma única vez fora abordado. Nem mesmo por um simples cigarro que lhe pedissem. Ele suspeitava que talvez seu rosto intimidasse. Mas era raro este caminho em que cruzava o centro da cidade, que ele sabia não ser confiável. Imagens do filme iam e vinham na memória e arrependia-se de não ter caneta nem papel para anotar trechos do filme. Gostava de tomar notas. Com o tempo suas anotações o alertaram para a precariedade da memória.

Pensou em cigarros, na comida que não encontraria em casa, nos travestis que lhe acenaram a pouco, no ambulante cabisbaixo que arrastava um carro enorme pesando uma tonelada de lixo do outro lado da rua. Prostitutas velhas, desdentadas e ressecadas que se postavam bêbadas na entrada de botequins-puteiros decrépitos. Pobres garotos expulsos de casa que perambulavam pelas ruas também oferecendo o que lhes restava, o corpo. Os seres da noite. E com surpresa atordoada achou-se ele inserido nessa fauna. Ele era um deles, um desses seres noturnos que quase sempre estão à margem. Pior, na margem da margem que se distancia ainda mais numa sucessão quase infinita. Eles, que não são mais do que meros dejetos humanos. Inesperadamente comovido, desamparado, como quem descobre que tem pais biológicos ainda piores do que os adotivos, parou por um instante para respirar o ar morno da noite. Fora pego por si mesmo, não conseguiu escapar de si, da própria verdade. Ele era mais um dentre todos aqueles. Porque então sentia aquela pena distante? Era aquilo escapismo, auto-engano ou a mais pura ignorância? Dava tudo no mesmo. Doía achar-se tão ingênuo, ele que se considerava imune. Por fim uma ratazana ainda lhe cruzou a calçada, apressada, figurando no quadro daqueles a quem só é permitido revelar-se sob as sombras.

Refez-se e olhou ao redor. Os instantes mínimos em que estivera imerso em pensamentos o distraíram um pouco e agora precisava situar-se. O silêncio incomodava e então ouviu um grunhido. Susto e palidez. O tempo estancou, como se por um instante tudo se cristalizasse. Apenas ele, a própria respiração, o próprio sangue que circulava audível e alucinado e o desconhecido. Ao pôr-se a andar fez barulho e temeu acordar o mundo para a própria chaga. Pensou em correr mas apenas caminha mais rápido. Um misto de lucidez e confusão o dominam. Pergunta-se porque está com medo, porque teve aquele acesso de vergonha infantil quando descobriu-se ele mesmo mais um marginal.

Pensa na liberdade que possui no momento e tem uma idéia. Pensa em algo como:Rjjjngf! Uma interjeição raivosa e animalesca que vem à tona do fundo mais recôndito. Não. Apenas perdeu o fio da meada e involuntariamente enunciou: rjjjngf. Se recompôs. Era preciso chegar em casa o mais depressa possível. Não sentia-se bem. Talvez a fome, o filme, a energia despendida ao voltar a pé o tivessem desorientando. Gritou timidamente. Saiu, como fosse um soluço inevitável. Correu, agora cheio de vergonha. Por favor que isso não aconteça, pedia a si. Adivinhava a coragem que sabia armazenada em si e temia a si mesmo como uma criança teme o escuro. Riu. Endoidava, pensou. Talvez estivesse perdendo o discernimento, mas ficou na dúvida porque tinha consciência de que seu grito era um lapso de insanidade. Retrucava para si: insanidade é meu ovo. Seu monte de merda. Grite! Acorde todos os que dormem tranqüilos enquanto você carrega o mundo fétido deles nas costas.

Foi então que viu uma sombra que crescia no asfalto que rebrilhava, úmido e fedorento. Parou imobilizado, sem saber se ia em direção a sombra ou pelo caminho oposto. A sombra tinha forma de barril, era uma figura atarracada. Perdeu todo o medo e assim, encheu-se de aventura. Obedecia e desobedecia ao mesmo tempo à sua própria voz. A sombra era um homem, baixo, gordo e velho que vinha em sua direção. Ele, por sua vez, escorou-se na parede de uma loja como se acreditasse estar invisível. A figura grotesca do gordo parecia exitar, bamboleante.

Quando percebeu que era observado o velho gordo resmungou: o que é? Silêncio. Tensão entre até onde ir com aquela provável querela boba com um pobre gordo e bêbado. Dizia-se pra dar meia volta e ir pra casa. Não faltava muito agora. Ele pensava no que dizer ou o que havia a dizer. O gordo, aproxima-se, agora virulento: Filho da puta, que é que tá olhando? Para o jovem, um momento de luz. Corrupção, injustiça, crimes torpes, a mazela mundial, tudo estava prestes a ser higienizado.

Ele corre resoluto e forte em direção ao gordo, o agarra com força e lhe beija a boca. Tomado de susto e pavor o homem pesado luta mas é vencido como uma presa africana e facilmente cai ao chão. Apavorado ele ainda ouve: amo você homem gordo. Atordoado o homem desiste de tentar se levantar e simplesmente olha a rua numa perspectiva semi-invertida a 90 graus. O que vê, nunca mais esquecerá enquanto viver, como se fosse um sonho ou pesadelo de infância. O rapaz que o beijara corria e pulava espaçadamente feito um clown de uma corte de tempos imemoriais, até sumir noite adentro.


Por: Ailson Lemos de Souza

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