15 setembro 2006

OUTRAR-SE

Fernando Pessoa, com sua diferenciação entre heterônimo e pseudônimo, contribuiu de certa forma para a reflexão de questões da subjetividade, há muito tempo discutida na literatura. Pessoa reforça que pseudônimo é apenas um nome outro do autor responsável por determinada obra. Já com o heterônimo, o autor ultrapassa a barreira de sua própria personalidade para fora de si mesmo. Para que surja o heterônimo é preciso uma extrema despersonalização, criando uma personagem que por sua vez cria personagens. Essa personagem criadora possui estilo próprio e sentimentos diferentes, às vezes até opostos aos da “pessoa viva”.
Fernando Pessoa estava refletindo sobre o processo de criação literária, os artifícios da arte. No entanto essa caracterização ilustra os desvãos da nossa subjetividade, muito estudada na psicanálise e nos próprios estudos literários.
Bem antes das descobertas revolucionárias iniciadas com Sigmund Freud, na psicanálise, a literatura já tecia e refletia em forma de arte o lado obscuro da constituição psíquica do indivíduo. Os “Tales of Mistery and Imagination” traduzidos para o português como Histórias Extraordinárias de Edgar Allan Poe contêm um conto como William Wilson, personagem-título que se debate, como afogado mesmo, diante da figura onipresente do sósia, como se fosse um fantasma que o acompanha por toda a vida. Atormentando-o com olhos vigilantes, até o dia em que decide pôr um fim na perseguição de forma trágica.
A tragicidade se apresenta como a melhor representação para um evento no qual o indivíduo não tem controle algum, o inconsciente. Outros autores contribuíram com diversas alegorias. Em “Dr. Jekill and Mr. Hyde”, em português O Medico e o Monstro, do escocês R. L. Stevenson, a bipartição do personagem central, Jekill, em duas figuras diversas se dá através de uma poção mágica. A vontade de Jekill de sair de si mesmo e transformar-se em outra pessoa o conduz também ao trágico, pois não parece ser possível duas pessoas habitarem o mesmo corpo. Escritor próximo de Stevenson cronologicamente, o francês Pierre Louÿs produziu uma pérola marginal dentro de sua obra com o conto A Falsa Esther. A personagem título é uma filósofa respeitada até o dia em que encontra o seu duplo. Assim como nas historias já citadas, o duplo aqui é uma figura oposta, uma prostituta criada através da pena de Balzac, que na época publicava em periódicos A Comédia Humana. A filósofa pede satisfações ao Sr. Balzac, e tamanha é a persuasão do escritor, que ela não tem mais certeza da própria identidade. Mais uma vez a história caminha para o trágico.
Como lembra o sábio Donaldo Schüller, a arte, não passa de lixo reciclado – e não vou me alongar explicando o real sentido dessa afirmação – na contemporaneidade temos os velhos dramas da subjetividade e do inconsciente documentados na velha arte, como por exemplo, O Homem Duplicado, de José Saramago e na arte nova, o cinema, em um filme como “Fight Club”, O Clube da Luta, dirigido por David Fincher. "Outrar-se", neologismo pessoano, é perigoso!


Tarco Zan

Um comentário:

claudio rodrigues disse...

Olá, povo do Ceará. Gostei dos textos. São densos, provocantes. Vamos nos unir e divulgar nossas produções, já que tudo fica restrito ao eixo rio-sampa. Abraços.