05 agosto 2008

retrato falado

Encontrei Marlon por acaso numa livraria. Ele me espetou o dedo nas costas enquanto eu vagava pelas prateleiras apinhadas de livros, refletia sobre a avalanche de escritores no mundo, e deixava derreter na boca o restante de uma trufa de morango. Existe uma frase sobre uma gota no oceano e a importância dessa gota. Eu esqueci a frase, o autor, mas pensava na idéia nela contida quando Marlon disse,
“Olá, como vai?”
Também havia esquecido a afetação dele, típica dos personagens de Virginia Woolf. Fazia tempo que não o encontrava. Não queria encontrá-lo mais na vida, pra ser sincero. Desejo impossível numa cidade como essa. Marlon é o nome que Marlon inventou pra si mesmo, porque seu nome real, segundo ele, é working-class demais. Lembrei disso na hora. O problema não era Marlon esconder-se numa falsa identidade, forjar uma pompa, uma ficção em torno de si. Não era isso exatamente que me incomodava nele. Era o todo ele.

“Então você também é escritor”, Marlon disparou.
Fiquei em dúvida se ele perguntava ou afirmava. Sem graça, respondi simplesmente,
“pois é.”
“Cadê o meu exemplar autografado? Quero uma dedicatória também”, ele disse num tom de troça. Desconcertado, prometi enviá-lo um.
“De maneira bem geral, sobre o que é o Retrato Falado? Estou curioso.”
“Seria melhor você ler e tirar uma conclusão.” Eu disse já bastante encabulado.
“Li a resenha de nossa amiga jornalista, e se não me falha a memória tem algo de pastiche de Oscar Wilde, não?”
“Isso mesmo querido, a Sarah cita meu Retrato Falado como um pastiche de Dorian Gray. Eu não diria que seja apenas isso.”
Pronto para me despedir, ofereci a ele uma trufa de pimenta. Ele aceitou com uma expressão ausente no rosto, imerso em si mesmo. Como se despertasse de um transe passageiro, ele perguntou
“Lembra de um conto meu que você leu e não gostou, achou muito parecido com Dorian Gray?”
“Sim, lembro”, respondi de pronto. “Leia o livro e você vai constatar que nada existe em comum entre o seu conto e o meu romance. Entretanto Marlon, sinta-se homenageado. Você foi uma das inspirações pro Retrato Falado.”

Deixei Marlon na livraria numa posição muito parecida a que eu estava anteriormente. Ele provavelmente divagava em meio a imagens passadas enquanto mirava títulos terrosos, incômodos, felizes, flutuantes. Na boca, uma ilusão doce.

T.a.r.c.o

Nenhum comentário: