30 março 2009

Um quadro

Reproduzo aqui um quadro. O fundo é de uma escuridão robusta, como a noite lunar, viva e faminta. O alto está pontilhado com estrelas mínimas, de um brilho tão ligeiro que mais parece ilusão de ótica, ou vista cansada, ou delírio do espectador que no momento não aceita bem isso: céu sem estrelas. Lua descartada da imagem. Sobre a superfície escamada de um rio bóia alguma coisa, um toco de madeira talvez. Casas simples se emparelham em toda a extensão do quadro na margem oposta do rio. O rio dá a impressão de ser profundo apesar de estreito. Quadradinhos assimétricos de cores preta e amarela sobre as casas dão movimento e vida ao paredão de casas. Cada quadrado amarelo indica uma abertura, janela ou porta, com luz acesa. Os quadrículos, em sua maioria, são pretos. Um cão gigante repousa bem no meio do paredão. O pintor não se preocupou com detalhes: o cão mal-amanhado lembra uma mula. Talvez seja na verdade uma mula mesmo, com traços caninos. O que mais? A luz de dois postes cai sobre uns tufos de mato na margem do rio e denuncia a presença de um gato dentro do matagal. O pintor tem boa percepção e senso de criação mas lhe falta precisão, decisão. Só se percebe a cabeça, e é um gato com toda a certeza. As duas pontinhas das orelhas estão nítidas. A vila rebuscada é um belo retrato da intrusão. Indefesa mas invencível como o mofo, as ervas daninhas, a vida. Que mais? Toda a dimensão da figura é aflitiva. Pode ser ou não ser, mas o objeto no meio do rio lembra mais o tronco de uma pessoa. Como se alguém dentro do rio espionasse a vila. Ou nadasse para a outra margem fugindo dela.

Tarco Lemos

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