27 setembro 2010

Tornando visível

Caligrafia

Alcançar primeiro com os olhos a mesa branca da varanda onde se esquece um caderno pautado em que se abortaram alguns resumos, pé ante pé, dissimuladamente, transpor o piso de cerâmica da sala, transpô-la, a sala, ato que se torna muito mais evidente e concreto na imagem dos pés sobre o piso de cerâmica, apoiar a mão direita com preciosismo (em nenhuma hipótese a esquerda) sobre uma cadeira-obstáculo que adormeceu no caminho, debruçar mais um sorriso sobre a capa do caderno onde se lê big explosion em caracteres irregulares e coloridas e se lembrar de que era o mais barato da papelaria, empunhar a caneta de tinta azul contra o canto superior esquerdo da primeira página disponível e observar que um traço quebra a sisudez das pautas nuas, desenvolver o traço em curvas e retas e círculos de acordo com as regras há muito assimiladas numa caligrafia dita elegante e satisfatoriamente legível, despejar no oco da página um monte delas, palavras, entrecortadas por suspiros virgulares e respirações profundas, mas, mais importante, tudo num único impulso que culmine na sombra só então possível de um ponto redentor, encerrando questões, enterrando ideias e imagens e simulacros, o ponto final da vitória ou da derrota, tanto faz, o ponto final depois de uma assepsia sem parágrafo ou ponto-e-vírgula, o ponto final que recolhe tudo o que sobrou e escorre frágil, o ponto final dos pulmões vazios e dos olhos marejados, o ponto final do fim.

Pirotecnia

Um menino sonhou com fogos de artifício.
Anos mais tarde, ele descobriu que as palavras às vezes formavam versos. Tornou-se poeta e durante toda a vida quis relatar o itinerário daquele sonho de infância. Remexeu nos dicionários e encontrou a possibilidade de criar imagens híbridas como sereias ou manticórias(1). Versos que soavam como café fresco, que corrompiam como aguardante pura, que salvavam como um lírio branco.
Anos mais tarde, publicou sua coletânea de poemas. O último deles se chamava Os fogos paralelos e era seu projeto de vida levado a cabo: fogos de artifícios transformados em versos.
Anos mais tarde, certa leitora comprou a coletânea. Ao enveredar pelo último poema, percebeu que as palavras assumiam cores diferentes e brilhavam sobre o fundo negro da página branca, ofuscando as estrelas, e impregnavam todo o livro com um discreto cheiro de pólvora.


Densidade

No meio do caminho tinha uma pedra porosa. Dava para ver seus grãos. Chegando mais perto, raios finíssimos de sol atravessavam a pedra. Mais perto ainda, um turbilhão, um pequeno redemoinho (uma galáxia minúscula) se movia lá dentro, no leve corpo da pedra.
A pedra, no meio do caminho, era permeável: se chovesse, ficava encharcada. O vento a enchia de poeira, pólen e cadáveres de insetos. O calor do meio-dia a deixava com sono e sede. A neblina que às vezes baixava no fim da tarde invadia a pedra, no seu corpo as nuvens trafegavam sem pressa. Os sons passavam por ela e iam se extinguir em algum lugar desconhecido. Na pequena galáxia dentro da pedra havia pequenos planetas orbitando em torno de sóis de diamante.


Jazz

Ela tira os óculos e guarda uma mecha de cabelo atrás da orelha. Faz frio no estúdio. Pensa vagamente no sonho que teve à noite enquanto canta my toes just touched the water.
A melodia desliza pela sala e ele tem plena consciência de que perdeu o controle do tempo. A música de
Norah Jones vai terminar, a noite vai terminar, na hora de dormir ele vai apagar o lustre e conseqüentemente seu reflexo no espelho vai morrer também.
O pai dela escuta música na sala (Norah Jones de novo, meu deus) e parece que não quer conversa. Ela pega uma bala na gaveta e volta para o quarto. Ao passar pelo corredor vê, no teto, uma lagartixa.
Suas pequeninas patas esverdeadas, quase translúcidas, grudam-se ao teto enquanto ela espreita um mosquito. Mas o inseto é mais rápido e sai voando pela janela aberta.
Lá fora, sob suas asas, a noite é translúcida, esverdeada, fria e doce. Parece uma melodia de jazz.

LISBOA, Adriana. Caligrafias. Rio de Janeiro. Rocco, 2004.

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