29 abril 2006

Coma o que Lê


A literatura é objeto de inúmeras interpretações sobre sua real função ou motivo de existir. Aquelas definições acadêmicas são as menos interessantes. Enquanto que outras, mais ligadas à íntima sensibilidade individual, são de longe, ao menos, muito mais empolgantes. Dos sentimentos mais singulares e impregnados de essência humana, a paixão está ainda sempre em evidência. Ela moldou movimentos estéticos, foi e é mote para inúmeras obras de arte e também para diversas metáforas das percepções do homem em torno do mundo que o cerca. Seu caráter emotivo, efusivo e muitas vezes lascivo torna-a um elemento moldável, ajustável e plenamente livre. Dessa forma a literatura ganha muito em valorização quando tem na paixão seu suporte existencial. Como alvo deste forte sentimento, a arte escrita é raciocinada por gêneros outros além do seu próprio.

Exemplo relevante é dado pelo ótimo filme do inglês Peter Greenaway,
O Livro de Cabeceira (The Pillow Book). Neste filme a literatura se metaforiza no táctil erotismo de corpos que fazem as vezes de livros. Assim, os objetos que contêm a arte literária são passíveis de fazer transbordar os sentidos em prazeres carnais. Reflexos que se refletem infinitamente, a literatura revela a essência do homem que agarra-se a ela como razão de ser, num círculo para lá de vicioso. O famoso dramaturgo americano Arthur Miller expôs semelhante relação em conto entitulado O Manuscrito Nu (The Bare Manuscript). A semelhança no trato dessas metáforas, de Greenaway e Miller, é intrigante. O também inglês Tibor Fischer, de origem búlgara, ficcinalizou a paixão que a arte literária desperta em certos indivíduos no seu conto O Devorador de Livros. Aqui o personagem do título entrega-se por completo ao ato da leitura. Ser desgarrado do cotidiano dos homens, sua existência é uma corrida contra o curto tempo de vida em detrimento da avalanche de palavras produzidas por milhares de vozes no decorrer dos séculos. Quando desconcertados com o seu hábito “anormal” lhe dizem ‘livros não são iguais à vida.’, ele responde ‘Não, são melhores.’ É muito mais um ato de paixão exacerbada por aquilo que realmente o preenche do que simples escapismo. Neste labirinto que, possivelmente, com algum esforço no decorrer do percurso, nos leva aos desvãos da consciência e do que é ser humano – demasiadamente humano – encontra-se uma outra estória que metaforiza a paixão. Ela vem por fim, por ser a mais incômoda.

Espelhando-se no horror enquanto gênero literário,
As Piedosas, romance do escritor argentino Federico Andhazia, é uma narrativa que desdobra-se em inúmeras referências a produtos e produtores clássicos, românticos e góticos. É a estória de um ser com nome humano Annette Legrand, aparência bestial e de hábitos desconcertantes. Devoradora de livros, ela não os lê propriamente. Ela mastiga e engole a produção intelectual que se amontoa numa esquecida biblioteca dentro de casa. Aprendiz de ratos e baratas, ela não expele mas acumula a essência do que come. Sua aparência monstruosa a aprisionou para sempre na solidão de porões, sótãos e subterrâneos. No entanto, ela é capaz de discorrer com desenvoltura sobre as elevadas produções escritas da tradição mundial. Isso através de cartas que envia a um ambicioso e cômico aspirante a escritor famoso. Ela tem o talento e o conhecimento que ele carece. Ele possui o sêmen que a ela é vital como água. A narrativa conta como coadjuvantes Lord Byron, Percy Shelley e Mary Shelley dentre outros. O livro merece ser lido, mais pela metáfora do que pela composição.

Ailson Lemos

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