15 maio 2006

Uma estrada para chamar de minha

"Vamos! Para o que não tem fim nem princípio."
Walt Whitman

Desde que foi lançado em 1957 On the road, a obra prima de Jack Kerouac vem influenciando cabeças as mais diversas, de escritores a cineastas, de bichos-grilo a intelectuais, de leitores críticos a quem dele só ouviu falar. A razão de tamanha aceitação pode ser encontrada em suas quatro características básicas: o teor auto-expositivo, o método de composição, a criação do mito da estrada e a metáfora que o próprio livro encerra.

Saber da vida alheia constitui uma forma de entretenimento do povo. No âmbito da literatura, os gêneros diário e biografia, mesmo quando forjados, chamam a atenção do leitor ao narrar detalhes da existência de uma outra pessoa, incitando à curiosidade, abrindo margem a comparações, identificações, reprovações, várias possibilidades de julgamento sem qualquer constrangimento, haja vista o caráter introspectivo e particular da leitura. Em On the road, Kerouac relata seus dias de inquietação e peregrinação, tentando ser fiel aos fatos reais, apenas mudando os nomes das pessoas com quem conviveu e exagerando nas descrições porque, afinal de contas, trata-se de ficção. Embora não tenha uma estrutura pontuada por datas, estando os capítulos voltados mais a períodos situacionais do que temporais, o texto aproxima-se do gênero diário ao citá-las ao longo da narrativa, estabelecendo cronologismo e linearidade. Num outro olhar investigativo, uma leitura da biografia de Kerouac e uma releitura de On the road consistem num exercício instigante de análise, percebendo-se artifícios sutis usados pelo autor na transposição das realidades, além de resignificar a implicância das personagens. Tem-se, pois, a constatação dos aspectos auto-expositivos presentes na obra, uam mescla de diário e biografia feita, talvez, inconsciente ou ebriamente mas, sem dúvida, de maneira funcional.

O segundo elemento de efeito em On the road é a maneira pela qual foi escrito. Apesar de Kerouac não ter sido o inventor da escrita automática, já havendo os dadaístas feito experiências nessa área, atribui-se a ele, no entanto, a originalidade de tê-la usado num contexto preciso, coerente com o conteúdo da narrativa. A história envolve personagens e situações dinâmicas e, portanto, encontra escape perfeito nessa linguagem ágil, próxima da expressão oral, sem bitolações gramaticais de formalismo excessivo, na qual interjeições e onomatopéias ganham papel comunicativo importante e as pontuações assumem os postos de efetivos agentes da fluidez emocional do escritor. O leitor capta a excitação pulsante de Kerouac através desses recursos selvagens e, num dado instante, assimila o ritmo das palavras, percebendo-lhes a cadência ora ansiosa, ora arrastada, numa variação imprevisível. Não à toa o Jazz é uma marca da geração Beat. Mas a escrita automática não foi inspirada apenas na música, claro. As drogas, principalmente o álcool, bem como as mulheres, os carros, a natureza, a literatura e tudo o mais que despertasse a paixão pode ser identificado como combustível à produção de Jack Kerouac.

A reunião de tantas imagens de significado intenso tornaria o texto prolixo se não fosse um componente capaz de unificá-las. Assim, chega-se a uma característica primordial de On the road: o mito da estrada. Outros artistas já haviam explorado a figura da estrada, mas suas abordagens davam-na uma mera posição de cenário ou, no máximo, observadora passiva dos acontecimentos. Kerouac, fascinado com as vias asfaltadas ou não, emociona-se a tal ponto que explode em visões animistas, adotando a estrada como uma companheira de aventura. A impressão dessa idéia se torna tão forte que, numa comparação com outras instâncias, logo se lhe atribuem novos significados, compreedendo-a como um termo metafórico da vida, do pensamento, da liberdade etc. Por isso a leitura de On the road desperta inquietação, vontade de colocar uma mochila nas costas e pôr o pé na estrada, nem que seja em sonho. Aí, pois, o surgimento de um mito por seu efeito imagístico.

Nenhuma outra manifestação artística conseguiria estabelecer com o seu conteúdo uma simbiose metafórica tão coesa quanto o livro e a estrada. Nisso consiste o último elemento característico de On the road. A estrutura material do livro, ou seja, a capa, as páginas introdutórias, o texto em si e a contracapa lembram, respectivamente, a placa indicando o fim do perímetro urbano, as primeiras paisagens estranhas à cidade, a viagem em si e a placa indicando o fim da jornada. Numa interpretação ainda mais profunda, dir-se-ia que antes e depois das placas estaria a realidade e, constituindo a viagem, a ficção.

On the road, embora não seja considerado pelos críticos como o melhor livro de Kerouac, carrega a fama de grande manifesto Beat em forma de narração. Por sua significância literária, promete reedições, inspirações e comentários, uma imortalidade baseada tanto nos elementos de efeito mencionados nesta breve análise, quanto por todos os outros que aqui não apareceram, ams que nem por isso são sem importância. A real estrada não tem começo nem fim, Kerouac bem o sabe, tanto que partiu para viagens maiores.

Gil
Carcomido pelas TRAÇAS

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