01 julho 2006

HOLOCAOS

"Teoricamente, só há uma possibilidade perfeita de felicidade: acreditar no indestrutível em si sem a ele aspirar. O indestrutível é um; cada indivíduo o é ao mesmo tempo que é comum a todos, daí esse laço indissolúvel entre os homens, que é sem exemplo." Franz Kafka


Hoje deu vontade de beijar o mundo até ele corar! Esse mundo mesmo, pálido e com cara de bunda de nenê. É que ouvi da boca de uma criança desconhecida perguntar ao pai se era o fim. Não achei graça, dou muita bola para a ingenuidade. Tem coisa mais verdadeira? Surpreendo-me ainda com essa beleza mórbida que há em tudo na vida. De horrores já estamos fartos todos os dias. E a mancha negra que se desprende dos jornais faz um sentido tremendo, pinta os nossos dedos, deixa especialmente os olhos encardidos com essa tinta sem-choro. Tento preservar minha integridade para não ficar indiferente aos fatos. Muita gente pouco se abala com uma bala na testa, o que dirá de um esquartejamento. Almoçam picadinho em frente à TV, vidrados. Contemplam a fratura exposta do programa policial intercalado ao molho de tomate escuso no canto da boca. Aonde vamos parar? Na morte.
Uma placa de PARE, atravessar na faixa. Do outro lado da rua, pessoas. Do outro lado dessas, cadáver. Foi um acidente de percurso do acaso. Imaginei agora Deus bem pertinho, tal um velhinho a contemplar os pombos da praça, mas sem grão nenhum a oferecer. Aglomeração, calor e cheiros ocres. Um bando de crentes na igreja cheia alcançando só o movimento furtivo da óstia erguida, parecia. Era o inverso, porém. O corpo, que não era de Cristo, estava estendido no asfalto e a revoada daqueles espíritos-santos não acontecia. Um inferno! Fazer o quê? Era a vida...
A realidade fora da caixinha áudio e vídeo soa mais Via-Láctica. Que mãe se atreverá um dia a produzir leite longavida nos bicos e dar atenção aos seus pobres rebentos? Nada como um novo nascimento após o alargar doloroso do útero trágico. Nada como um recém-saído da cela miúda para um cárcere maior. Desviar o foco, mudar de canal. Afinal, há outros planetas. Não adianta ficar encalacrado no universo alheio. Não que devamos ser egocêntricos o bastante, mas é que o povo gosta de uma confraternizaçãozinha barata. Imagine um bando de carpideiras agourentas num funeral, fazendo troça aos cochichos. São uma corja, assassinos da dignidade. Uma platéia sem espontaneidade no aplauso, claps induzidos. Um grupo de pretensos apreciadores da Arte zunindo críticas por despreferência pessoal. Uma cáfila de famintos chorando saliva. Um coletivo lotado suando. Uma gangue do lixo sorrindo sob o efeito da cola - coca cara. Uma classe robótica angariando o dez do professor com minissaias e garrafas de uísque importado. Um time de futebol placar 10X01 pisando na bola e fazendo gols contra. Uma outra classe, a proletária, esmagando a massa encefálica como se fossem sabonetes poupados. Uma sociedade que há de endurecer, já a perder a ternura cedo um tanto mais. Girando em circunlóquios elípticos, redundantes nas palavras e gestos, sem sair do lugar. Prisão de ventre material hodierna, diarréia cerebral pós-moderna. Estava escrito: "Viestes do Pós e ao Pós voltarás". Eis outra terminologia para o caos que eu não sabia. Término (do grego/troiano = fim); Logia ( logos, do "Penso, logo mais nem existo"). E quando houver a hecatombe original da humanidade inteira, uma nova consciência brotará das profundezas do que antes se julgava abominável: o lar dos insetos onívoros de silhueta achatada! Estes proliferarão da estreiteza de seus ralos para dominar, despretensiosos, a Terra. Sobreviventes dessa atmosfera que foi fera, ou melhor, Era. Agora não mais devora.

Pal

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