05 julho 2006

Maleduco

"Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida."
James Joyce
Cara mais egoísta... Não quis me emprestar o livro sobre As Regras da Arte, de Bordieu, inventando uma desculpa bem safada. Ele disse que precisava devolver ao amigo com urgência, enquanto o rosto amarelo se delineava em certa tensão. As rugas verticais entre as sombrancelhas de mais jovem do que quer aparentar a idade bastavam como indícios mentirosos. Foi ríspido comigo tal um mau pai a enxotar o filho, fazendo-se de ocupado. Que nada, aposto que ele só folheou algumas páginas coloridas com aquela leitura superficial skimming. Ainda falou que aquilo não era pra mim, que não servia pra minha área. Nossa, quanta restrição! Qualquer um sabe da pluralidade, do alcance da arte. E mesmo que fosse uma obra hermética acerca da fibrologia dos ratos, qual o problema caso me interesasse por ela? Como alguém que almeja lecionar em universidade se nega a compartilhar conhecimentos? Isso demonstra a ambição de querer estar acima, quando o digno seria estar entre os outros tão iguais a ele no sentido de humanidade. Mas a maioria à qual esse indivíduo é pertencente visa com exclusividade a recompensa dinheirista ante os seus atos "erróicos". O ofício acaba maçante pela supervalorização arrogante do material em detrimento do ontológico. Resignei-me na ocasião. Apenas não me conformo em ser negada 3X3 vezes ao dia. Nem suporto ter de negar esmola aos miseráveis, porém também nego quando nada tenho realmente. E quanto aquele livro, tratava-se de um empréstimo não executado por má vontade possessiva. Fora o que não revelei ainda: o tal cara egoísta era o meu irmão. É.
O que eu disse pra ele? Bem, após ter lido vorazmente as orelhas, o prefácio, e de ter sido recusado o meu pedido, fui saindo delicadamente prometendo a mim, em voz alta, uma visita à Biblioteca Pública. PÚBLICA, ouviu bem? Definindo: a que não é privada!

Ao lá chegar, expandi a vista pelas prateleiras e acabei pegando coisa outra muito boa, haja vista não ter encontrado As Regras. Para quê precisava delas? Daí, cheguei Perto do Coração Selvagem de Lispector. Livre, sem ciência humanexatacalculista. Foi aí que me deparei com a mulher da recepção, distante e mal-humorada, jogando Paciência no computador. Sem me responder o Boa-tarde, não quis tomar os livros no balcão. Tive que adentrar sua redoma esticando os braços. Logo feito o trabalho burocrático de registrar a locação, vendo minha identificação com a testa franzida, ela lançou os livros assim de qualquer maneira sobre o mármore frio. Agradeci com um sorriso e fui embora.

Pal

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