07 julho 2006

Nem sempre

Estava trêmula trêmula. Podia-se sentir o cheiro da sua insegurança a quilômetros de distância, escalando muros e cercas eletrificadas, dirimindo no ar. Sobre a calçada de paralelepípedos desajustados, metia os passos largos com pouco zelo. Pernas delgadas sustentadas pela sola fina da sandália. Um suadouro nos pés fazia lama da poeira nas reentrâncias da borracha. Difarçava bem o pretume brotado entre os dedinhos pisados, com o trançado das tiras negras do calçado. Carros furiosos vinham em muitas cores pela rua ao seu lado. Ela sozinha, no espaço dos caminhantes parecia ir contra a corrente do mar em trânsito. Maresia composta pelo monóxido de carbono imperceptível, mas que matava. Indiferente ao que lhe queria penetrar as narinas e às consequências disto, lançou um olhar irrequieto à árvore de copa cheia e balouçante pelo estardalhaço canoro em busca de ninho. Deixou o verde para trás, acelerando a caminhada com medo da aproximação noturna. Medo de ser abordada pelos ciclistas marrons descamisados, tinha de proteger os livros que portava na bolsa. A um passo de chegar onde queria, uma imensa avenida dupla lhe assustava. Obedecia semáforos mais que veículos e detestava os desligados da sinaleira. Outro dia, por muito pouco não se viu arremessada ao chão por uma carreta sem faróis. Mas, enfim, desviou a má lembrança e atravessou aquele rio poluído de buzinaços com sua pisada enlameada e sisuda. Parou em frente à sorveteria a escolher o sabor preferido. Chegada. Era sempre o mesmo dentre os 50 sabores: creme com passas. Sentou-se na última mesa, redonda e com quatro lugares à espera de apenas um amigo: o de sempre. Tomou o sorvete meio nervosa até a casca. Sujou os dedos, foi lavar. O relógio quadrado na parede lhe cochichava com os ponteiros vagarosos que era cedo. Mania de pontualidade extrema. Mudou de lugar, mas continuou ali, na mesma mesa. Não deu nem três minutos, já se impacientava. Puxou um livro da bolsa sobre o colo, os joelhos balançavam fora do ritmo despreocupado dos iguais que lanchavam seus gelos cremosos de chocolate. Então, semi-concentrou-se na leitura, alternada entre zunidos de ônibus e olhos desconhecidos passando rente. Não gostava daquilo. Enquanto ele não chegava, uma menina previa pela janela a morte das minhocas que seriam comidas pelas galinhas que mais tarde seriam mortas pelas pessoas que as comeriam e também morreriam, assim, de forma inesperada. Nada, apenas faziam parte da história que ela evocava ao pensamento. Personagens que acabavam por ocupar as três cadeiras restantes. Noite. Fazia calor e ela ainda tremia, mais forte dessa vez. Precisava urgentemente cometer um ato clandestino e performático, romper consigo mesma e com todos. Romper com a espera e com a leve sonolência que esta provocava... Decidida, dirigiu-se até o balcão do sorveteiro: - Mais um guardanapo, por favor! Puxou a caneta preta de ponta grossa da bolsa, sempre a mesma, e escreveu: "Saí pra comprar cigarros. Não sei se volto. Ass.: Joana." Virou-se, para não mais olhar o que teria das costas para trás, com a decisão entre os dedos femininos e brancos, sumindo enfim, na própria fumaça.

Pal

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