02 novembro 2010

Shirley Jackson


Apesar de pouco conhecida no Brasil, Shirley Jackson é considerada uma das maiores contistas americanas e admirada por autores famosos como Stephen King, Neil Gaiman, A. M. Homes, Joyce Carol Oates, dentre outros. Ela tornou-se célebre como autora de contos e romances de horror. Porém, ainda em vida, ela recusava o rótulo dos gêneros, acreditando que sua obra um dia falaria por si. São muitas interpretações que a obra de Jackson fez surgir no decorrer do tempo. Talvez o seu conto mais famoso seja The Lottery (A Loteria) de 1948, que dá título à coletânea de contos The Lottery and Other Stories, e que originalmente tinha como subtítulo The Adventures of James Harris (As Aventuras de James Harris). James Harris trata-se de um "elemento" desestabilizante que aparece na maioria das histórias, na forma de personagem ou de alucinação, sem que para isso seja necessário nomeá-lo James ou Harris. A autora retirou este tema de uma balada da tradição oral inglesa (James Harris, The Daemon Lover), formando assim um emaranhado de discursos e símbolos que fazem destas narrativas um verdadeiro diálogo com o imaginário coletivo americano. É muito interessante. Escolhi traduzir - livremente - Colloquy (Colóquio), basicamente pela brevidade do texto. Onde estará James Harris no Colóquio?

  Colóquio

Shirley Jackson


O doutor parecia competente e respeitável. A Sra. Arnold sentia-se vagamente confortável diante da aparência dele, o que amenizou um pouco a sua agitação. Ela sabia que ele havia notado a sua mão tremendo ao aproximar-se para que ele lhe acendesse o cigarro. Ela sorriu como a se desculpar, mas ele a encarou seriamente.
“A senhora parece aborrecida,” ele disse com preocupação.
“Estou muito aborrecida,” disse a Sra. Arnold. Ela tentava falar devagar e lucidamente. “Este é o motivo que me trouxe aqui ao invés de ir ao Dr. Murphy – nosso médico habitual.”
O médico franziu o cenho levemente. “Meu marido,” continuou a mulher. “Não quero que ele saiba que estou agitada, e o Dr. Murphy provavelmente acharia necessário informá-lo.” O médico assentiu, sem comprometer-se, a Sra. Arnold percebeu.
“O que a preocupa?”
A mulher respirou profundamente. “Doutor,” ela disse, “como as pessoas sabem se estão ficando loucas?”
O médico olhou para ela.
“Não é ridículo?,” ela disse. “Não queria ter colocado dessa forma. De qualquer modo, é algo difícil de explicar sem parecer tão dramático.
“Insanidade é mais complicado do que a senhora imagina,” disse o médico.
“Eu sei que é complicado,” ela respondeu. “Essa é a única coisa da qual eu tenho certeza. Uma das coisas que quero dizer é insanidade.”
“Por gentileza, o que disse?”
“Esse é o meu problema, doutor.” A Sra. Arnold escorou-se e retirou suas luvas de baixo da bolsa, colocando-as cuidadosamente por cima. Em seguida ela pôs as luvas em baixo da bolsa novamente.
“Por que não me contar a história por completo?,” ele disse.
A Sra. Arnold suspirou. “Todo mundo parece compreender,” ela começou, “e eu não. Olha.” Ela inclinou o corpo para frente, gesticulando com a mão enquanto falava. “Não entendo a maneira como as pessoas vivem. Antes, costumava ser tão simples. Quando criança eu vivia num mundo em que um monte de outras pessoas também vivia e todos conviviam juntos e as coisas caminhavam sem alvoroço.” Ela olhou para o médico. Ele estava assentindo de novo, e a Sra. Arnold continuou, a voz elevando-se aos poucos. “Olha. Ontem pela manhã meu marido parou para comprar o jornal no caminho para o trabalho. Ele sempre compra o Times, sempre do mesmo jornaleiro, e ontem o homem não tinha um Times pro meu marido e ontem a noite quando ele chegou em casa para o jantar ele disse que o peixe havia passado do ponto e queimado e que a sobremesa estava doce demais e ficou a noite toda sentado falando sozinho.”
“Ele podia ter procurado outro jornaleiro,” disse o médico. “É comum encontrar edições nas bancas do centro da cidade até tarde.”
“Não,” a mulher respondeu, lenta e distintamente, “Acho melhor recomeçar. Quando eu era criança –” ela disse. E logo interrompeu-se. “Olha,” disse, “existiam palavras como medicina psicossomática? Ou cartéis internacionais? Ou centralização burocrática?”
“Bem,” o médico arriscou.
“O que querem dizer?” Insistiu a Sra. Arnold.
“Num período de crise internacional,” o médico disse gentilmente, “quando você encontra, por exemplo, padrões culturais desintegrando-se rapidamente...”
“Crise internacional,” disse a Sra. Arnold. “Padrões.” Ela começou a chorar baixinho. “Ele disse que o homem não tinha o direito de não guardar um Times pra ele,” ela disse histericamente, procurando um lenço na bolsa, “ele começou a falar de planejamento social a nível local e rendimentos de sobretaxa e conceitos geopolíticos e inflação deflacionária.” A voz da Sra. Arnold ergueu-se num gemido plangente. “Ele realmente disse inflação deflacionária.”
“Sra. Arnold,” disse o médico, contornando a mesa, “não ajuda em nada colocar as coisas desse modo.”
“Não ajuda o quê?” ela disse. “Está todo mundo realmente ficando louco, exceto eu?”
“Sra. Arnold,” o médico falou com severidade, “Quero que a senhora se contenha. Num mundo desnorteado como o nosso atualmente, a alienação da realidade freqüentemente–”
“Desnorteado,” disse a Sra. Arnold. Ela levantou-se. “Alienação,” ela disse. “Realidade.” Antes que o médico pudesse detê-la, ela caminhou até a porta e a abriu. “Realidade,” ela disse, e foi embora.              

Tradução: Tarco Lemos


The Lottery and other stories
Shirley Jackson
Farrar, Straus and Giroux, 2005

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